Por Carlos Wellington Soares Martins* A Ciência da Informação conforme postulada por Le Coadic (2004) é uma ciência social e interdisciplinar, portanto além de dialogar com diversas áreas de conhecimento, também tem, ou pelo menos deveria ter, nas relações e sujeitos sociais o foco de suas investigações e problematizações, ou seja, para existirem dados, informações e conhecimento fazem-se necessária a existência em coletividade e o estabelecimento de formas de comunicação.
Em sua própria formação epistemológica, que se nutre em teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, tendo na informação o seu núcleo duro de investigação, a Ciência da Informação acaba por ter um percurso de consolidação um tanto problemático no que diz respeito à sua estrutura, a maneira em que se localiza no campo científico e a centralidade de seu objeto de estudo. Dentre suas principais características, entendidas como gerais, Seracevic (1992,1995) pontua a sua interdisciplinaridade (entendida de forma tranqüila); vínculo com as tecnologias da informação (evidenciado pelo fetiche da informação presente na área e pouco problematizado) e; sua participação ativa na sociedade (seu principal desafio).
Ou seja, para que existam e ocorram processos comunicacionais, fluxos informacionais, redes de interação, competência informacional, regimes de informação, acesso livre a dados e informações, estes e mais outros só são possíveis porque as formações sociais mediada pelas relações humanas avançam em seus processos de interação modificando as formas em que se vive em sociedade pautada em demandas específicas.
Portanto, o objeto da Ciência da Informação são as necessidades de inteligibilidade decorrentes das mudanças das formações sociais em consonância com suas demandas informacionais. O título de nossa provocação faz uma menção ao texto da pesquisadora indiana Gayatri Chacravorty Spivak (2010) bastante conhecido nos cursos das áreas de Ciências Humanas e Sociais: “Pode o subalterno falar?” onde a autora, expoente do movimento pós-colonial nas ciências, tece críticas acerca dos conhecimentos hegemônicos presentes nas áreas de conhecimento tendo lugar e espaço: Europa e Estados Unidos, ocorrendo à solidificação de uma única narrativa, e esta como sendo indiscutível dentro dos cânones acadêmicos. Ou alguém ousa sugerir mudanças, ou pelo menos questionar os cânones da Ciência da Informação em seus berços esplendidos europeus e estadunidenses? A resposta dada é que os clássicos não podem deixar de ser estudados, mas a questão que fica é: porque só eles? Esse sujeito subalternizado, e o conhecimento produzido por ele, passa a ser o “Outro” de quem tem o “discurso autorizado” dentro das “epistemologias do norte” e a quem pode falar sobre tudo e sobre todos por meio de privilégios que o colocam em uma situação confortável em uma sociedade estratificada por marcadores sociais de diferenças como: raça, gênero, origem, entre outros.
Fonte: Banco de imagens Pexel (2021).
É impossível para os intelectuais franceses contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ― esteja aprisionado no debate sobre a produção desse Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa (SPIVAK, 2010, p. 45-46).
O materialismo-histórico-dialético, presente no texto de Spivak, aponta para que o que acontece na realidade concreta também se materializa na produção do conhecimento, é como se ocorresse nesse espaço uma luta de classes marcada também pela exploração e pela opressão. Trazendo o contexto para a pós-graduação, onde a Ciência da Informação se localiza no contexto brasileiro, isso fica mais evidente tanto pela inserção muito reduzida de pessoas a este nível de escolarização, um propalado discurso de que são uma “elite” do conhecimento nacional e a notória dificuldade de trabalhar com ações afirmativas para preenchimento de seus quadros, tanto de discentes quanto de docentes.
Se ao sujeito é proibido de alcançar esse status e tensionar o espaço com sua presença, se não se vê reconhecido em quem produz e sobre o que é produzido, se suas demandas e necessidades não são consideradas, a ele também, como forma de interdição sistêmica, lhe é negado o direito de falar. Para atestar nossa hipótese indagamos: quantas travestis você conhece na Ciência da Informação? (se parou pra pensar, contou e não deu os dedos de uma mão, não lembrou de ninguém? Alguma coisa está errada).
Para fins de discussão nesse texto utilizaremos a sigla LGBTI+ (FACCHINI, 2020), mas ciente de que também são utilizadas outras letras que remetem a outros sujeitos deste universo como os Transgêneros (T), Travestis (T), Intersexuais (I), Assexuais (A), Queers (Q) e o símbolo + para exemplificar a pluralidade de termos existentes. Essa discussão é legítima, pois como afirma Butler (1997) a linguagem tem forma performartiva e sanciona a diferença e pode ser uma reversão estratégica política.
Fonte: Banco de imagens Pixabay (2021).
Se enquanto LGBTI+ não me é possível afirmar minha orientação sexual, expressão e identidade de gênero enquanto pesquisador, se as dissertações e teses produzidas na Ciência da Informação tendo como objeto essas relações dissidentes tanto na norma do que se “deve” e “pode” estudar não contabilizam uma dezena de trabalhos, se corpos que fogem a norma e as padronizações não tensionam esses espaços com sua presença, ocorre o interdito da fala, de corpos e de identidades, é como se a Ciência da Informação não quisesse falar sobre e dificultasse a inserção deste debate e destes sujeitos sociais, sem perder de vista que a pós-graduação, e por conseguinte a Ciência da Informação, são reflexos das problemáticas da sociedade em geral, inclusive da LGBTIfobia.
Quando se fala em LGBTIfobia, automaticamente o senso comum faz as pessoas associarem as violências letais, agressões físicas e/ou verbais, no entanto são inúmeras as formas de violência como as: econômica, afetiva e aqui nos deteremos na simbólica e sistêmica, que é aquela que se vale de um discurso legitimado e de formas amparadas por um pacto de manutenção das classes privilegiadas para interditar, por exemplo, que LGBTI+ estejam na pós-graduação, pois não se adéquam ao modelo hegemônico de cisheternormatividade. O conceito de cisheteronormatividade diz respeito as formas de organização das formações sociais ocidentais dentro de uma matriz heterossexual compulsória e hegemônica que dita a norma entre sexo, gênero e desejo, inferindo a cisheterossexualidade como sendo natural e as demais como experiências dissidentes e patológicas (MATTOS;CIDADE, 2016).
No entanto para todo processo de opressão existe um movimento de resistência, se as vivências e produção de conhecimento sobre e por orientações sexuais, expressões e identidades de gênero na Ciência da Informação se encontram em uma perspectiva subalternizada, portanto configurando-se como um “conhecimento precário” como preconizado por David Hess (2016), este conceito é utilizado por Hess como forma de identificar as ausências de conhecimento sobre determinados tema/assunto/sujeitos situando essa discussão dentro de uma perspectiva de relações de poder que estruturam o campo científico e infere quais são os temas prioritários e quais não podem ser pesquisados e financiados, produzindo de forma sistemática ausências e esquecimentos no campo científico.
Porém, existe ações e a utilização de mecanismos não oficiais e convencionais de produção de conhecimento para além da perspectiva acadêmica e científica, e onde exponencialmente tem crescido a participação de LGBTI+ na Ciência da Informação em lives do Instagram, Facebook, YouTube e em blogs, esse movimento se configura como uma produção de conhecimento contrapúblico, onde uma rede de pessoas e organizações se mobilizam com vistas a promover, ou provocar, uma mudança social em uma perspectiva e contestação do conhecimento precário do público oficial (HESS, 2016).
Importante pontuar que em 2019 o selo Nyota lançou a obra “Do invisível ao visível: saberes e fazeres das questões LGBTQI+ na Ciência da Informação” publicação esta organizada por LGBTI+s e com textos escritos por membros desta população e com temáticas voltadas a esse universo se configurando como um marco de tensionamento entre as demandas informacionais LGBTI+ e a Ciência da Informação, no entanto eventos que agregam pesquisadores da área e sua produção, como por exemplo, o ENANCIB, invizibilizam o debate, confirmando seu status de conhecimento precário e a população LGBTI+ subalternizada na fala na Ciência da Informação.
Mesmo com a postura conservadora da Ciência da Informação, algumas mudanças são perceptíveis, vários sujeitos sociais LGBTI+ tem se insurgido e reivindicado seu lugar ao sol na Ciência da Informação, o número é pequeno, mas acreditamos que o armário da Ciência da Informação já foi escancarado e que ninguém retorna mais a clandestinidade, há muito a ser feito e muito a ser tensionado, quebra de paradigmas e dogmas engessados devem ser TRANSpostos, reforçar o diálogo com a produção da América Latina Ásia e África e retomando o debate do inicio do texto, o objeto da Ciência da Informação são as necessidades de inteligibilidade decorrentes das mudanças das formações sociais em consonância com suas demandas informacionais, portanto as minas, monas e manas também tem o direito legítimo de fazer parte de todo esse movimento.
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Lenguage, poder e identidad. Madri: Sintesis, 1997.
COADIC, I. F. L. A Ciência da Informação. Brasília, DF: Briquet de Lemos,
2004.
FACCHINI, R. De homossexuais a LGBTQIAP+: sujeitos políticos, saberes, mudanças e enquadramentos. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. (orgs.). Direitos em disputa: LGBTI+: poder e diferença no Brasil contemporâneo. São Paulo: UNICAMP, 2020.
HESS, D. J. Undone science: social movements, mobilized publics, and industrial transitions. Cambridge, MA, MIT Press, 2016. DOI:10.7551/mitpress/9780262035132.001.0001
MATTOS, A. R; CIDADE, M. L. Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periodicus, v.1, n. 5, maio/out. 2016.
ROMEIRO, N.; ALMEIDA, B.; MARTINS, C. W. (orgs.). Do invisível ao visível: saberes e fazeres das questões LGBTQIA+ na Ciência da Informação. Florianópolis: Selo Nyota, 2019. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1rb895Md-eQmG1ePNskX5hTTTEn6gtGRJ/view. Acesso em: 20 maio 2021.
SARACEVIC, T. Information Science: origin, evolution and relations. In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. (eds.). Conceptions of Library and Information Science; historical, empirical and theoretical perspectives. London, Los Angeles: Taylor Graham, 1992. p. 5-27.
SARACEVIC, T. Interdiscilinary nature of information science. Ciência da Informação, Brasília, v. 24, n. 1, p. 36-41, 1995.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Dados biográficos do autor
* Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Mestre em Desenvolvimento Socioespacial e Regional pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Graduação em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Maranhão. Membro do Grupo de Trabalho Bibliotecas para a Diversidade e Enfoque de Gênero da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB). Membro do Observatório de Políticas Públicas LGBTI+ do Maranhão. Desenvolve pesquisas sobre as temáticas de Políticas de Livro e Leitura,Política de Informação Científica e Gênero, Diversidade, Identidade e Sexualidade.
E-mail: cawell2000@gmail.com
Como citar
MARTINS, C. W. S. Pode, na Ciência da Informação, o LGBTI+ falar?. Ciência da Informação: considerações históricas e sua origem. Ciência da Informação Express, [S. l.], v. 2, n. 5, 27 de maio de 2021. Disponível em: https://www.cienciadainformacaoexpress.com/post/pode-na-ci%C3%AAncia-da-informa%C3%A7%C3%A3o-o-lgbti-falar.
Teaser
Comments