por Anne Clinio*
A Ciência Aberta é um movimento internacional, cada vez mais institucionalizado que, em linhas gerais, fomenta a adoção do paradigma do conhecimento aberto. Na prática, incentiva a comunidade científica a abrir vários tipos de conteúdos produzidos durante o processo de pesquisa de modo que, na prática, qualquer pessoa está livre para acessá-lo, utilizá-lo, modificá-lo, e compartilhá‑lo. Entre as suas múltiplas práticas, as mais consolidada entre as instituições formais de pesquisa é o Acesso Aberto às publicações científicas e, mais recentemente, os Dados Abertos.
Fonte: Banco de imagens Wix (2021)
Neste post, apresentamos brevemente a proposta de caderno aberto de laboratório, uma prática que está se desenvolvendo à margem das políticas científicas das principais agências de fomento à pesquisa nacionais e internacionais e organizações privadas de filantropia. Alternativamente, o caderno aberto de laboratório vem ganhando adeptos entre instituições e cientistas ligados a áreas de pesquisa de pouco (ou nenhum) interesse comercial como o desenvolvimento de terapias e medicações para doenças negligenciadas. Alguns exemplos são o desenvolvimento de compostos antimaláricos pelo projeto Open Source Malaria[1] e o estudo de doenças neurológicas raras pelo Montreal Neurological Institute-Hospital, também conhecido como Neuro[2].
O que é?
O caderno aberto de laboratório (open notebook science em inglês) é uma proposta elaborada por Jean-Claude Bradley, professor e pesquisador de Química na Universidade de Drexel University, como “uma maneira de fazer ciência na qual – da melhor maneira possível – você torna toda a sua pesquisa livre e acessível ao público em tempo real” (BRADLEY, 2010). Segundo o autor, esta expressão se refere à:
“[...] existência de uma URL linkada a um caderno de laboratório (como este) que está disponível abertamente e é indexado por ferramentas de busca habituais. Ele não precisa obrigatoriamente parecer com um caderno de laboratório de papel, mas é essencial que as informações necessárias para que o pesquisador chegue às suas conclusões estejam igualmente disponíveis para o resto do mundo. Basicamente, nenhuma informação privilegiada.” (BRADLEY, 2006)
Como é um caderno aberto de laboratório na prática?
O caderno aberto de laboratório proposto por Bradley para a área de Química se baseia em uma “página de experimento”, com formato estruturado, cujo preenchimento deve ser realizado antes de sair do laboratório. O objetivo é garantir a qualidade do registro e possibilitar sua reutilização em serviços de informação. A página é composta por nove seções:
Número do experimento
Representação gráfica
Nome do pesquisador
Objetivo
Procedimento
Resultado
Discussão
Conclusão
Log
Página do experimento 269, realizado pelo estudante Matthew McBride
Fonte: Open Notebook Science Challenge.
Disponível em: http://onschallenge.wikispaces.com/EXP269 Acesso em: 5 abr. 2015
O log é considerada a seção mais importante por registrar, de maneira independente, por terceiros, a marca temporal (third party timestamp) de quem fez uma contribuição, quando, onde, como e os resultados obtidos.
A entrada de informações adota um estilo objetivo, sem floreios, no qual o pesquisador deve relatar os procedimentos e os resultados parciais de cada etapa do experimento. Este formato dispensa a elaboração de uma narrativa, exigida nos artigos científicos, e constrói o que Bradley chama de “experimento sem história” (storyless experiment).
Esta inovação pretende valorizar os resultados parciais (result-centric) em contraposição às revistas científicas que privilegiam a comunicação de experimentos (experiment-centric) ou a obtenção de uma molécula (molecule-centric).
Por que abrir um caderno de laboratório?
Segundo Bradley, o modo dominante de comunicação de novos conhecimentos científicos, baseado majoritariamente na publicação de artigos em revistas com sistema de avaliação às cegas por pares, afeta negativamente a circulação da informação e o avanço em pesquisa. Se, no passado, este era o mecanismo possível para resguardar, em alguma medida, a qualidade das contribuições, o autor vislumbra a internet como oportunidade tecnológica para eliminar a intermediação da comunicação do conhecimento científico por um grupo muito restrito de gatekeepers (editores, avaliadores e autores) que definem temas prioritários, formatos, critérios de cientificidade e qualidade. Enfim, o que é publicável.
O autor destaca que a mediação realizada por esses gatekeepers reduz drasticamente tanto a quantidade como a qualidade da informação relevante circulante. Do ponto de vista quantitativo, Bradley estimou que 87% da sua produção não ultrapassaria os muros do seu laboratório porque são experimentos que não alcançam os “resultados esperados” e, portanto, são considerados irrelevantes para publicação. Já no aspecto qualitativo, o autor identificava que a maioria dos artigos da sua área oferece descrições altamente condensadas, genéricas e insuficientes para sua reprodução por um cientista relativamente competente.
Para Bradley, este padrão de comunicação fomenta uma cultura do segredo entre pesquisadores, desestimula a colaboração e promove informação de qualidade duvidosa. Além disso, elimina informação relevante, desperdiça recursos financeiros e humanos, gera retrabalho e retarda o desenvolvimento científico.
Rumo à Ciência Aberta
Na contramão das práticas estabelecidas, o caderno aberto de laboratório adotado por Bradley preconiza o compartilhamento, em tempo real, de todos os experimentos realizados em um laboratório, seja qual for o seu status (em andamento, finalizado, abandonado) ou resultado (favorável, desfavorável, contraditório ou ambíguo). Isto porque, compartilhar os estágios intermediários, incertezas e dificuldades da pesquisa é considerada a melhor estratégia para atrair colaboradores e recursos e promover uma “ciência mais rápida, ciência melhor” (faster science, better science).
Neste sentido, a página de experimento é o elemento central de fluxo de trabalho automatizado que adota formatos abertos e licenças abertas e integra repositórios, blogs, wikis, bancos de dados, ferramentas de busca, e de visualização, queries e aplicativos para estabelecer um ecossistema de colaboração aberta no qual qualquer pessoa ou sistema automatizado pode contribuir.
Em última instância, o caderno aberto de laboratório é parte de extensa plataforma de revisão por pares que amplia a sua escala ao se tornar:
Aberta - a todos e todas
Transparente - a vista de todos
Contínua - sem data de expiração
Interativa - admite réplicas e tréplicas
Dinâmica - com novos comentários e retificações ao longo do tempo
Deseditorializada - sem controle prévio de um comitê editorial
Vantagens
Algumas vantagens desta inovação seriam garantir maior precisão e riqueza de detalhes sobre as práticas laboratoriais, estimular a excelência ao longo do processo científico, promover discussões mais consistentes em ciência e permitir que um experimento bem documentado (seja qual for o seu status ou resultado) possa ser considerado uma contribuição à ciência.
A abertura potencializaria as oportunidades de escrutínio, validação, correção, refutação, complementação e aprendizagem por audiência mais ampla.
Uma nova maneira de fazer ciência
Clinio e Albagli (2017) consideram que o caderno aberto de laboratório engendra uma nova cultura epistêmica por deslocar a ênfase dos “matter of facts” (fatos científicos) para o que chamamos de “matters of proof” (questão de prova). Mais do que a construção de um fato científico irrefutável, a ser comunicado em um artigo científico que narra sua obtenção, a proposta do caderno aberto de laboratório valoriza a qualidade da documentação disponibilizada para a comunidade científica a partir de práticas baseadas na transparência, na qualidade das evidências e, especialmente, na preservação da proveniência de dados (data provenance). Ou seja, no histórico sobre o conjunto dos dados que permite rastrear a origem, as transformações pelas quais foram submetidos, as análises e as interpretações realizadas pelos cientistas ao longo da pesquisa.
Notas
Saiba mais
CLINIO, A. Apresentação no 7º Colóquio Virtual do PROPEC - Princípios éticos na pesquisa e o papel da ciência aberta, a partir de 1h12. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E8EwAMo9Oe8. Acesso em: 10 dez. 2021.
CLINIO, A. Por que open notebook science? Uma aproximação às ideias de Jean-Claude Bradley. In: ALBAGLI, S.; MACIEL, M. L.: ABDO, A. (Org.). Ciência Aberta, Questões Abertas. 1ed.: Ibict, 2015, p. 253-286. Disponível em http://livroaberto.ibict.br/handle/1/1060. Acesso em: 10 dez. 2021.
CLINIO, A. Novos cadernos de laboratório e novas culturas epistêmicas: entre a política do experimento e o experimento da política. 2016. 240 f. Tese (Doutorado) - Curso de Ciência da Informação), Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: http://ridi.ibict.br/bitstream/123456789/943/1/anne_clinio_doutorado_final_14-06-17.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
CLINIO, A.; ALBAGLI, S. Open notebook science as an emerging epistemic culture within the Open Science movement. Revue Française des Sciences de L’Information et de la Communication, v. 11, p. -, 2017. Disponível em: http://journals.openedition.org/rfsic/3186. Acesso em: 10 dez. 2021.
CLINIO, A.; ALBAGLI, S. Cadernos abertos de laboratório e publicações líquidas: novas tecnologias literárias para uma Ciência Aberta. RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 11, p. 1, 2017. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1427/pdf1427. Acesso em: 10 dez. 2021.
*Sobre a autora
Doutora e Mestre em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, convênio Ibict-UFRJ (PPGCI Ibict-UFRJ). Pesquisadora independente, membro do Laboratório de Ciência Aberta e Inovação Cidadã - CindaLab. Consultora de Comunicação no Projeto Rural Sustentável Caatinga. Ex-integrante da equipe da Vice Presidência de Ensino, Informação e Comunicação (VPEIC) e do Grupo de Trabalho de Ciência Aberta (GTCA) da Fiocruz, colaborando na formulação e execução da estratégia institucional para produção coletiva e implantação da sua política de Ciência Aberta, com foco na abertura de dados de pesquisa. Membro do projeto Doc.art e Documenta?! Alumni do Programa Open Leaders da Mozilla Foundation (2019). Membro honorário do OpenlabEc (www.openlab.ec). Interesses de pesquisa: ciência aberta, cadernos abertos de laboratório, documentação, ciência cidadã, dados abertos, commons. CV: http://lattes.cnpq.br/6711428343463558
Como citar
CLINIO, A. Ciência Aberta: Cadernos abertos de laboratório. Ciência da Informação Express, [S. l.], v. 2, n. 12, 21 dez. 2021.
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